As cidades-fantasmas do agronegócio e por que nenhum agroinfluencer fala sobre elas

Quando 1000 demissões se tornam o apocalipse de dezenas de municípios, e ninguém com muitos de seguidores quer falar sobre isso

As cidades-fantasmas do agronegócio e por que nenhum agroinfluencer fala sobre elas
Photo by Erik Mclean / Unsplash

206 municípios brasileiros abrigam metade dos 458 frigoríficos de inspeção federal do país. Nessas cidades pequenas, com até 50 mil habitantes, um único frigorífico não é apenas uma empresa — é a própria espinha dorsal econômica local.

A fusão entre Marfrig e BRF, que criou a MBRF Global Foods com receita consolidada de R$ 152 bilhões anuais, presença em 117 países e 130 mil funcionários, foi celebrada como "um movimento natural" pelos mercados financeiros. Mas tem um custo que ninguém está contando: 1.000 demissões anunciadas — e potencialmente dezenas de milhares de empregos indiretos ameaçados em comunidades inteiras dependentes dessas operações.

E aqui começa a história que os influencers do agro, com seus 5 milhões de seguidores somados, preferem não contar.


A dependência sistêmica do agro

Em 206 municípios pequenos brasileiros que abrigam grandes frigoríficos, 41% do total de acidentes de trabalho notificados em 2019 ocorreram nesses estabelecimentos. Foram 7.314 trabalhadores do setor vitimados, em um universo de 17.761 ocorrências.

Mas o problema vai muito além dos acidentes. Esses municípios apresentam índice de acidentes de trabalho 66% maior que a média nacional. Considerando apenas cidades pequenas, a diferença chega a 212%.

Por que isso importa? Porque revela o nível de dependência dessas cidades em relação aos frigoríficos. Quando uma única empresa responde por mais de 40% dos acidentes de trabalho locais, ela provavelmente responde por percentual semelhante — ou maior — do emprego total.

Segundo especialistas, frigoríficos costumam ser um dos principais geradores de empregos e divisas para municípios pequenos, especialmente quando se considera o tamanho da cidade em relação ao tamanho da operação.

A estratégia por trás da localização

Para Paulo Rogério de Oliveira, doutor em Ciências da Saúde e especialista em saúde ocupacional, a escolha das empresas de carne por municípios pequenos faz parte de uma estratégia corporativa: "Eu vou onde o padre vai pedir a minha bênção e o delegado vai perguntar se pode abrir um inquérito. Essas empresas se aproveitam de redução de impostos, empréstimos públicos e doação de terrenos para expropriar as cidades pequenas, onde quem manda mesmo é o dono do negócio".

A lógica é simples e brutal: quanto menor a cidade, maior o poder da empresa. Quanto maior a dependência econômica local, menor a capacidade de resistência a condições ruins de trabalho, salários comprimidos ou demissões em massa.

O caso Mozarlândia no Brasil invisível

Em Mozarlândia (GO), foram emitidas 7,92 Comunicações de Acidentes de Trabalho (CATs) para cada mil habitantes no ano passado — três vezes e meia a média nacional. Das 124 comunicações, 116 partiram da JBS.

Faça as contas: uma cidade onde 93,5% dos acidentes de trabalho vêm de uma única empresa. Agora imagine o que acontece quando essa empresa decide "otimizar custos", "buscar sinergias" ou simplesmente fechar a planta.


R$ 805 Milhões em "sinergias" = quantas cidades ameaçadas?

As empresas estimam sinergias de R$ 485 milhões via cross-selling, ganhos de volume e prêmio de preços, além de eficiência na cadeia de suprimentos. Esperam ainda R$ 320 milhões em economia anual via racionalização das operações comerciais e logísticas, e simplificação da estrutura corporativa.

"Racionalização das operações" é o eufemismo corporativo para fechamento de plantas. "Simplificação da estrutura" significa demissões em larga escala.

1.000 demissões diretas, dezenas de milhares indiretas

A operação anunciou sinergias de R$ 320 a 485 milhões por ano através da eliminação de aproximadamente 1.000 empregos no Brasil, focados em funções administrativas e de apoio.

Mas isso é apenas a ponta do iceberg. Para cada emprego direto em frigorífico, estima-se entre 3 a 5 empregos indiretos na cadeia produtiva e no comércio local.

Faça a conta:

  • 1.000 demissões diretas
  • × 3 a 5 empregos indiretos
  • = 3.000 a 5.000 empregos ameaçados

E isso sem considerar o impacto em produtores integrados, transportadores, fornecedores de embalagens e toda a economia de serviços que gira ao redor dessas operações.

A concentração do Setor

A MBRF terá 130 mil trabalhadores, presença em 117 países e uma produção estimada em 8 milhões de toneladas de produtos.

A criação da BRF em 2011 já havia sido considerada "o maior caso da história do Cade" ao unificar Sadia e Perdigão. Agora, com a fusão com a Marfrig, as duas companhias passam a operar como um único grupo.

O resultado prático: Menos compradores para pequenos e médios produtores. Menos concorrência. Mais poder de barganha concentrado. Municípios inteiros à mercê das decisões de um único grupo econômico.


O ecossistema dos agroinfluencers

Em um encontro inédito realizado pela indústria de máquinas agrícolas Jacto em outubro, foram reunidos 18 agroinfluencers do país que, somados, impactam cerca de 5 milhões de pessoas.

Os irmãos agrônomos Saile e Cesar Farias, donos do perfil @jovensdoagro com mais de 37 mil seguidores, faturam entre R$ 10.000 e R$ 15.000 por mês através de sua agência J.A Marketing Digital. A empresa faturou R$ 1 milhão em 2022 e espera chegar a R$ 3 milhões em 2023.

O valor médio para cobertura de uma feira agrícola oscila entre R$ 4.000 e R$ 15.000 a diária, dependendo do perfil do influenciador. O contrato mais caro já fechado pela agência foi de R$ 220.000. BASF, John Deere, Banco do Brasil, Chevrolet e Carrefour são algumas das contratantes.

Quem paga a conta?

Aqui está o conflito de interesse explícito: JBS, BRF, Marfrig e outras gigantes do setor são as patrocinadoras que sustentam o ecossistema de influencers do agro.

Na COP29 realizada em Baku, Azerbaijão, o Brasil foi o país com mais representantes do agronegócio, totalizando 54 na delegação oficial. Bayer, BRF, Marfrig e JBS credenciaram mais de dois representantes cada uma.

Marfrig e BRF levaram juntas oito lobistas na delegação brasileira. As empresas ressaltaram que as conferências se estabeleceram como "importante fórum para promover iniciativas concretas e fortalecer o diálogo multissetorial".

Tradução: As mesmas empresas que demitem 1.000 pessoas e ameaçam municípios inteiros são aquelas que financiam eventos, patrocinam influencers e moldam a narrativa pública sobre o agronegócio.

O custo do Silêncio

Ricardo Nicodemos, vice-presidente-executivo da Associação Brasileira de Marketing Rural e Agronegócio (ABMRA), pondera: "O mundo digital é uma realidade para grande parte dos produtores. Mas a confiabilidade ainda é muito incipiente".

Para Marcello Brito, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag): "As mídias digitais têm esse poder de aproximar pessoas e realidades diversas. Mas o estágio de experimentação no agro é embrionário, é preciso ter cuidado para não confundir marketing com comunicação".

A pergunta incômoda que ninguém está fazendo: Se influencers do agro se propõem a "combater a desinformação" e "mostrar a realidade do campo", por que nenhum deles está falando sobre o impacto real da concentração de mercado?


81% de dependência externa

Estudo sobre dependência de municípios brasileiros às transferências externas mostra que a grande maioria apresentou nível muito alto de dependência, com resultados acima de 75%. A média nacional manteve-se em 81% nos períodos analisados, aumentando para 85% quando se observam municípios de pequeno porte — até 5 mil habitantes.

O que isso significa? Que 4 em cada 5 reais da receita de pequenos municípios vêm de fora — seja de transferências governamentais, seja da atividade econômica local. Quando um frigorífico fecha ou reduz operações, não há "plano B" fiscal.

O Setor de frigoríficos: 10% do PIB do sgronegócio

A pecuária brasileira de corte representa cerca de 10% do PIB do agronegócio brasileiro e movimenta R$ 747 bilhões ao ano, segundo dados do Beef Report de 2021.

O setor de frigoríficos emprega mais de 544 mil trabalhadores no Brasil, verificando-se aumento do número de contratações nos últimos anos.

Mas a distribuição desses 544 mil empregos não é uniforme. Está concentrada justamente nessas 206 cidades pequenas, onde o fechamento ou redução de uma única planta pode representar 15% a 30% do emprego formal local.

Municípios que desapareceram do mapa econômico

Análise do IBGE mostra que, em 2002, 1.383 municípios correspondiam a cerca de 1% do PIB nacional. Em 2021, esse número caiu para 1.306 — ou seja, a base da pirâmide ficou mais estreita.

O que aconteceu com esses 77 municípios? Muitos simplesmente "desapareceram" economicamente, tornando-se dependentes crônicos de transferências governamentais após perderem suas principais atividades econômicas.

Quantos mais vão desaparecer quando a MBRF começar sua "racionalização de operações"?