As cidades-fantasmas do agronegócio e por que nenhum agroinfluencer fala sobre elas
Quando 1000 demissões se tornam o apocalipse de dezenas de municípios, e ninguém com muitos de seguidores quer falar sobre isso
206 municípios brasileiros abrigam metade dos 458 frigoríficos de inspeção federal do país. Nessas cidades pequenas, com até 50 mil habitantes, um único frigorífico não é apenas uma empresa — é a própria espinha dorsal econômica local.
A fusão entre Marfrig e BRF, que criou a MBRF Global Foods com receita consolidada de R$ 152 bilhões anuais, presença em 117 países e 130 mil funcionários, foi celebrada como "um movimento natural" pelos mercados financeiros. Mas tem um custo que ninguém está contando: 1.000 demissões anunciadas — e potencialmente dezenas de milhares de empregos indiretos ameaçados em comunidades inteiras dependentes dessas operações.
E aqui começa a história que os influencers do agro, com seus 5 milhões de seguidores somados, preferem não contar.
A dependência sistêmica do agro
Em 206 municípios pequenos brasileiros que abrigam grandes frigoríficos, 41% do total de acidentes de trabalho notificados em 2019 ocorreram nesses estabelecimentos. Foram 7.314 trabalhadores do setor vitimados, em um universo de 17.761 ocorrências.
Mas o problema vai muito além dos acidentes. Esses municípios apresentam índice de acidentes de trabalho 66% maior que a média nacional. Considerando apenas cidades pequenas, a diferença chega a 212%.
Por que isso importa? Porque revela o nível de dependência dessas cidades em relação aos frigoríficos. Quando uma única empresa responde por mais de 40% dos acidentes de trabalho locais, ela provavelmente responde por percentual semelhante — ou maior — do emprego total.
Segundo especialistas, frigoríficos costumam ser um dos principais geradores de empregos e divisas para municípios pequenos, especialmente quando se considera o tamanho da cidade em relação ao tamanho da operação.
A estratégia por trás da localização
Para Paulo Rogério de Oliveira, doutor em Ciências da Saúde e especialista em saúde ocupacional, a escolha das empresas de carne por municípios pequenos faz parte de uma estratégia corporativa: "Eu vou onde o padre vai pedir a minha bênção e o delegado vai perguntar se pode abrir um inquérito. Essas empresas se aproveitam de redução de impostos, empréstimos públicos e doação de terrenos para expropriar as cidades pequenas, onde quem manda mesmo é o dono do negócio".
A lógica é simples e brutal: quanto menor a cidade, maior o poder da empresa. Quanto maior a dependência econômica local, menor a capacidade de resistência a condições ruins de trabalho, salários comprimidos ou demissões em massa.
O caso Mozarlândia no Brasil invisível
Em Mozarlândia (GO), foram emitidas 7,92 Comunicações de Acidentes de Trabalho (CATs) para cada mil habitantes no ano passado — três vezes e meia a média nacional. Das 124 comunicações, 116 partiram da JBS.
Faça as contas: uma cidade onde 93,5% dos acidentes de trabalho vêm de uma única empresa. Agora imagine o que acontece quando essa empresa decide "otimizar custos", "buscar sinergias" ou simplesmente fechar a planta.
R$ 805 Milhões em "sinergias" = quantas cidades ameaçadas?
As empresas estimam sinergias de R$ 485 milhões via cross-selling, ganhos de volume e prêmio de preços, além de eficiência na cadeia de suprimentos. Esperam ainda R$ 320 milhões em economia anual via racionalização das operações comerciais e logísticas, e simplificação da estrutura corporativa.
"Racionalização das operações" é o eufemismo corporativo para fechamento de plantas. "Simplificação da estrutura" significa demissões em larga escala.
1.000 demissões diretas, dezenas de milhares indiretas
A operação anunciou sinergias de R$ 320 a 485 milhões por ano através da eliminação de aproximadamente 1.000 empregos no Brasil, focados em funções administrativas e de apoio.
Mas isso é apenas a ponta do iceberg. Para cada emprego direto em frigorífico, estima-se entre 3 a 5 empregos indiretos na cadeia produtiva e no comércio local.
Faça a conta:
- 1.000 demissões diretas
- × 3 a 5 empregos indiretos
- = 3.000 a 5.000 empregos ameaçados
E isso sem considerar o impacto em produtores integrados, transportadores, fornecedores de embalagens e toda a economia de serviços que gira ao redor dessas operações.
A concentração do Setor
A MBRF terá 130 mil trabalhadores, presença em 117 países e uma produção estimada em 8 milhões de toneladas de produtos.
A criação da BRF em 2011 já havia sido considerada "o maior caso da história do Cade" ao unificar Sadia e Perdigão. Agora, com a fusão com a Marfrig, as duas companhias passam a operar como um único grupo.
O resultado prático: Menos compradores para pequenos e médios produtores. Menos concorrência. Mais poder de barganha concentrado. Municípios inteiros à mercê das decisões de um único grupo econômico.
O ecossistema dos agroinfluencers
Em um encontro inédito realizado pela indústria de máquinas agrícolas Jacto em outubro, foram reunidos 18 agroinfluencers do país que, somados, impactam cerca de 5 milhões de pessoas.
Os irmãos agrônomos Saile e Cesar Farias, donos do perfil @jovensdoagro com mais de 37 mil seguidores, faturam entre R$ 10.000 e R$ 15.000 por mês através de sua agência J.A Marketing Digital. A empresa faturou R$ 1 milhão em 2022 e espera chegar a R$ 3 milhões em 2023.
O valor médio para cobertura de uma feira agrícola oscila entre R$ 4.000 e R$ 15.000 a diária, dependendo do perfil do influenciador. O contrato mais caro já fechado pela agência foi de R$ 220.000. BASF, John Deere, Banco do Brasil, Chevrolet e Carrefour são algumas das contratantes.
Quem paga a conta?
Aqui está o conflito de interesse explícito: JBS, BRF, Marfrig e outras gigantes do setor são as patrocinadoras que sustentam o ecossistema de influencers do agro.
Na COP29 realizada em Baku, Azerbaijão, o Brasil foi o país com mais representantes do agronegócio, totalizando 54 na delegação oficial. Bayer, BRF, Marfrig e JBS credenciaram mais de dois representantes cada uma.
Marfrig e BRF levaram juntas oito lobistas na delegação brasileira. As empresas ressaltaram que as conferências se estabeleceram como "importante fórum para promover iniciativas concretas e fortalecer o diálogo multissetorial".
Tradução: As mesmas empresas que demitem 1.000 pessoas e ameaçam municípios inteiros são aquelas que financiam eventos, patrocinam influencers e moldam a narrativa pública sobre o agronegócio.
O custo do Silêncio
Ricardo Nicodemos, vice-presidente-executivo da Associação Brasileira de Marketing Rural e Agronegócio (ABMRA), pondera: "O mundo digital é uma realidade para grande parte dos produtores. Mas a confiabilidade ainda é muito incipiente".
Para Marcello Brito, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag): "As mídias digitais têm esse poder de aproximar pessoas e realidades diversas. Mas o estágio de experimentação no agro é embrionário, é preciso ter cuidado para não confundir marketing com comunicação".
A pergunta incômoda que ninguém está fazendo: Se influencers do agro se propõem a "combater a desinformação" e "mostrar a realidade do campo", por que nenhum deles está falando sobre o impacto real da concentração de mercado?
81% de dependência externa
Estudo sobre dependência de municípios brasileiros às transferências externas mostra que a grande maioria apresentou nível muito alto de dependência, com resultados acima de 75%. A média nacional manteve-se em 81% nos períodos analisados, aumentando para 85% quando se observam municípios de pequeno porte — até 5 mil habitantes.
O que isso significa? Que 4 em cada 5 reais da receita de pequenos municípios vêm de fora — seja de transferências governamentais, seja da atividade econômica local. Quando um frigorífico fecha ou reduz operações, não há "plano B" fiscal.
O Setor de frigoríficos: 10% do PIB do sgronegócio
A pecuária brasileira de corte representa cerca de 10% do PIB do agronegócio brasileiro e movimenta R$ 747 bilhões ao ano, segundo dados do Beef Report de 2021.
O setor de frigoríficos emprega mais de 544 mil trabalhadores no Brasil, verificando-se aumento do número de contratações nos últimos anos.
Mas a distribuição desses 544 mil empregos não é uniforme. Está concentrada justamente nessas 206 cidades pequenas, onde o fechamento ou redução de uma única planta pode representar 15% a 30% do emprego formal local.
Municípios que desapareceram do mapa econômico
Análise do IBGE mostra que, em 2002, 1.383 municípios correspondiam a cerca de 1% do PIB nacional. Em 2021, esse número caiu para 1.306 — ou seja, a base da pirâmide ficou mais estreita.
O que aconteceu com esses 77 municípios? Muitos simplesmente "desapareceram" economicamente, tornando-se dependentes crônicos de transferências governamentais após perderem suas principais atividades econômicas.
Quantos mais vão desaparecer quando a MBRF começar sua "racionalização de operações"?
