O mercado que o varejo brasileiro não atende
Consumidores pagam até 44% a mais por produtos importados e mesmo assim seguem comprando. A "taxa das blusinhas" revelou lacuna de US$176 milhões mensais que varejo nacional ignora
Um ano após a entrada em vigor da "taxa das blusinhas", tornou-se evidente uma fraqueza do varejo do Brasil: 80% dos consumidores de menor renda afirmam buscar em plataformas internacionais produtos que simplesmente não encontram no mercado brasileiro.
E mesmo pagando até 44% a mais devido à tributação de 20% mais ICMS, 55% deles ainda preferem importar a desistir da compra.
Os números fazem parte de levantamento inédito da LCA Consultores obtido pelo InfoMoney e revelam um contraste: a política criada para "proteger" o varejo nacional acabou expondo que o verdadeiro problema não é a concorrência internacional, mas a incapacidade da indústria brasileira de atender demandas reais de consumo.
"Isso mostra que a política reduziu não só o poder de compra, mas também a diversidade de bens disponíveis", aponta o estudo.
Desde agosto de 2024, as importações mensais caíram de US$176 milhões para US$122 milhões em junho de 2025. Mas essa redução não se transformou em vendas para o varejo nacional, simplesmente desapareceu da economia.
Produtos sem similares no Brasil
Os dados sobre o comportamento de consumo vão além. Entre consumidores de menor renda, classes C, D e E, que respondem por 70% da arrecadação da taxa, a proporção dos que desistiram da compra após ver o preço final com imposto subiu de 35% para 45%.
Mas dos 45% que desistiram, a maioria não migrou para produtos nacionais. Segundo Eric Brasil, diretor de Regulação e Políticas Públicas da LCA Consultores, "o consumo que deixa de ir para plataformas estrangeiras não se transforma necessariamente em demanda para a indústria local, já que muitos produtos não têm similares nacionais."
Categorias a serem consideradas pelo varejo brasileiro
Análise de dados de plataformas como Shein, AliExpress e Shopee, que dominam 68% das importações de baixo valor no Brasil, revela padrões específicos de consumo que o varejo nacional não prioriza:
1. Eletrônicos de nicho (35% das buscas)
Acessórios para smartphones (capas especializadas, suportes magnéticos, carregadores sem fio compactos), fones de ouvido bluetooth com cancelamento de ruído na faixa de R$ 80-150, smartwatches básicos com funcionalidades fitness, gadgets domésticos inteligentes (controles por voz, sensores automatizados).
O varejo nacional oferece apenas marcas premium (acima de R$300) ou produtos básicos sem funcionalidades intermediárias. A faixa de R$80-200, onde está 62% da demanda, é praticamente inexistente.
2. Moda funcional (28% das buscas)
Roupas esportivas com tecnologia de tecido (dry-fit, compressão) a preços acessíveis, peças de moda streetwear com designs diferenciados, acessórios de moda (bolsas multifuncionais, organizadores de viagem), calçados casuais com design contemporâneo na faixa de R$ 100-180.
O fast fashion nacional replica tendências com 6-12 meses de atraso. Consumidores jovens querem estilos atuais sem pagar R$300+ por peça de marca.
3. Beleza e autocuidado (18% das buscas)
Ferramentas de skincare (limpadores faciais, massageadores, LED masks), produtos coreanos de beleza (séruns, essências, máscaras), organizadores de maquiagem e cosméticos, kits de manicure e cuidados pessoais.
O varejo oferece marcas estabelecidas caras ou produtos básicos. O segmento intermediário de "beauty tech acessível" é ignorado.
4. Casa e organização (12% das buscas)
Organizadores modulares para ambientes pequenos, utensílios de cozinha com design funcional, itens de decoração minimalista contemporânea, gadgets domésticos que resolvem problemas específicos (dispensadores automáticos, sensores, iluminação inteligente).
Lojas físicas priorizam decoração tradicional. O consumidor urbano que vive em apartamentos pequenos não encontra soluções de organização inteligente.
5. Pet e fitness (7% das buscas)
Acessórios para pets com design moderno, equipamentos de fitness doméstico compactos, wearables de saúde básicos, produtos de bem-estar acessíveis.
O segmento pet foca em alimentação e higiene básica. Acessórios de lifestyle pet (roupas, organizadores, tech) são premium ou inexistentes.
Proteção financeira sem inovação na indústria gera custos
O estudo da LCA revela que, entre agosto de 2024 e agosto de 2025, o crescimento do emprego nos setores "beneficiados" pela taxação — comércio varejista e indústria — ficou em apenas 0,97%, abaixo da média nacional de 3,04%.
Isso revela que a taxa não gerou empregos. Não estimulou investimento produtivo. Não incentivou inovação de portfólio. Apenas encareceu produtos para quem menos pode pagar e revelou a enorme lacuna competitiva do mercado nacional.
"O mercado de trabalho formal no Brasil tem baixa sensibilidade a políticas pontuais como essa", explica Eric Brasil. "Custos de contratação e demissão, além da burocracia, dificultam qualquer resposta imediata das empresas."
Mas há outro fator estrutural: varejo e indústria não tinham (e ainda não têm) produtos para oferecer. Não adianta proteger mercado se não há o que vender para preencher a demanda reprimida.
Como gerar US$ 2,1 bilhões por ano
Se US$176 milhões mensais deixaram de ser importados, isso representa US$2,112 bilhões anuais de demanda não atendida. Para contexto, isso equivale a:
- 1,6% do faturamento total do e-commerce brasileiro em 2024 (R$ 185 bilhões)
- 82% do faturamento anual do Magazine Luiza (R$ 12,8 bilhões em 2024)
- Mais que o faturamento combinado de Shein e AliExpress no Brasil em 2023 (estimado em US$ 1,8 bilhão)
Esses são valores que os consumidores estavam dispostos a gastar e que agora está congelado porque o varejo brasileiro não oferece alternativas.
Por que a Shein se mantém como um grande case de sucesso
Em outubro de 2024, a Shein lançou uma iniciativa permitindo que vendedores brasileiros acessem dados dos "itens mais vendidos internacionalmente" para comercializar produtos iguais ou semelhantes produzidos localmente.
Assim, os vendedores que vincularam produtos aos best-sellers internacionais registraram aumento de até 30% no tráfego.
"Estamos comprometidos em fortalecer nossa plataforma no Brasil, e essa iniciativa oferece uma chance única para vendedores locais comercializarem produtos já testados e aprovados internacionalmente", afirmou Felipe Feistler, country manager da Shein no Brasil.
A mensagem é clara: existe mercado. Existe demanda. Falta apenas produto.
Estratégias para aquecer o varejo
1. Reverse engineering de demanda
Marcas devem analisar sistematicamente best-sellers de plataformas internacionais para identificar gaps específicos. Ferramentas como Google Trends, análise de reviews do AliExpress e monitoramento de redes sociais revelam exatamente o que consumidores buscam.
Plano de ação: pequenas e médias empresas podem utilizar dados públicos de "mais vendidos" para desenvolver produtos locais em 60-90 dias.
2. Foco em "missing middle"
A faixa de preço entre R$80-250 está abandonada. Produtos premium custam R$ 300+. Produtos básicos custam menos de R$ 50 mas não têm funcionalidades desejadas. A oportunidade está no meio.
Plano de ação: Desenvolver linhas intermediárias com funcionalidades modernas a preços acessíveis para classes B/C.
3. Velocidade > perfeição
Fast fashion chinês lança produtos em 15 dias. Varejo brasileiro leva 6-12 meses. Reduzir time-to-market é mais importante que perfeccionismo.
Plano de ação: Implementar processos ágeis de desenvolvimento, prototipagem rápida e testes com pequenos lotes.
4. Design funcional além de estético
Consumidores importam produtos que resolvem problemas específicos (organizadores modulares, gadgets que economizam espaço, wearables que monitoram saúde).
Plano de ação: Investir em design thinking focado em "jobs to be done" ao invés de apenas copiar tendências estéticas.
5. D2C e marketplaces nativos
Plataformas próprias ou presença em marketplaces brasileiros (Mercado Livre, Shopee nacional, Amazon Brasil) permitem testes rápidos e feedback direto.
Plano de ação: Lançar MVPs (produtos mínimos viáveis) em marketplaces antes de investir em produção em escala.
A demanda está provada. Falta apenas uma coisa: alguém disposto a preencher o gap antes que plataformas internacionais instalem operações locais e capturem esse mercado definitivamente.
Porque os 80% invisíveis não vão desaparecer. Eles apenas estão esperando que um varejista brasileiro ou estrangeiro finalmente os enxergue.